SinproSP

Crônica faz homenagem ao saudoso Prof. Fiorano

Atualizada em 10/03/2006 17:17

O Prof. Carlos José Fiorano, figura que fez parte da história do SINPRO-SP - foi membro da diretoria nos anos 80 e, mais tarde, ministrou cursos e palestras aqui -, marcou vidas com suas aulas de geometria descritiva. A crônica abaixo, feita por um de seus alunos e publicada originalmente na revista Quarteirão Paulista, presta homenagem a ele.

Fiorano

Por Albano Martins Ribeiro*

O homem entrou na sala de aula e, de súbito, todos se calaram como se tivessem morrido ao mesmo tempo. Fosse quem fosse, era de se ver que aquele professor tinha currículo, mesmo para mim, que vivia a minha primeira aula no meu primeiro dia naquela escola. Era um homem enorme, de andar lento, pausado, cabelos brancos e penteados, usava óculos de lentes muito grossas, molduras pretas enjaulando dois olhos poderosos que, ampliados pela potência das lentes, me lembravam dois tubarões gêmeos presos num aquário.

O homem fechou a porta atrás de si, murmurou um grave bom dia — poucos tiveram coragem de lhe responder —, dispôs as coisas sobre a mesa, puxou a cadeira, sentou-se e, como quem se apresenta, varreu a sala com o olhar sério e um sorriso francamente forçado. Uma chaleira em ebulição congelaria imediatamente com esse olhar, e é fácil imaginar o que houve com a minha espinha dorsal.

Perscrutada a sala, o homem abriu seu diário na lista de presença, tirou a tampa da caneta — tudo muito pausadamente, como quem limpa a arma que usará na execução do condenado —, empurrou os óculos com o indicador contra a base do nariz e disse, com voz de barítono, como se fosse a coisa mais normal do mundo:
— Segue.
“Segue?” — pensei — “Segue o quê?” E enquanto eu me perguntava, alguém disse:
— Um! — e o homem fez uma bolinha em frente ao número um.
Outro aluno continuou:
— Dois! — e foi mais uma bolinha para o número dois.
“Mas... o que é isso?” — continuava eu pensando — “Segue?
Um? Dois? É a chamada? Esse homem faz a chamada assim?”
— E me pus de ouvido em pé. Quando chegasse minha vez, eu até me arriscaria a dizer meu número. Mas... qual era mesmo o meu número? Era meu primeiro dia de aula. Eu tinha visto meu nome em algum lugar, em alguma lista, sei lá, ao lado de um número três. Mas não tinha certeza. E agora?
— Três! — troveja o homem, visivelmente contrariado por esperar tanto tempo por algum pronunciamento, já marcando uma falta para o aluno que pensava ausente.
— Presente! — gritei, ao ouvir meu provável número.
O homem então olhou para mim — ai, Deus, os tubarões estão olhando para mim — e, demonstrando pouca paciência, cobriu o F recém-escrito com uma bolinha muito maior que as outras, incomodado pelo contratempo, pela assimetria da bolinha, pelo borrão no diário inaugurado há instantes, e — veja só! — já conspurcado. Eu tinha descoberto — um pouco tarde demais, é verdade — que aquilo era uma chamada. Era a maneira Fiorano de fazer a chamada. Nenhum outro professor nessa escola — ou em outra, que eu tivesse notícia — fazia chamada dessa maneira.

Mas também nenhum outro professor dava uma aula como aquela, ninguém atraía metade do interesse que ele arrebanhava logo que punha os pés na sala. Apesar de o assunto ser chatíssimo para a maioria — Geometria Descritiva —, Fiorano encantava as serpentes com o olhar, e elas lhe devolviam a atenção que só recebe quem ensina Educação Sexual. Parte por medo, parte por deslumbramento, a canalhada conseguia aprender os segredos da espinhosa e tridimensional Geometria.

Dava tristeza ver Fiorano limpar uma lousa. Seus desenhos, apesar de técnicos, eram tão bonitos que não mereciam desaparecer numa nuvem de poeira branca. As retas que traçava eram estranhamente retas, ao contrário das nossas, que conseguiam ser tortas mesmo feitas à régua. Seus arcos de círculo eram quase perfeitos, traçados sem compasso. Nenhum recurso que ele pudesse usar era demais. Por exemplo, quando uma intersecção entre duas linhas precisava aparecer mais que as outras, Fiorano lambia a ponta do indicador, espetava o dedo molhado no cruzamento das linhas, e depois circundava a área limpa com o bico do giz, dando ao ponto o destaque que merecia. E, como sempre — e para meu desespero —, acabada a lousa, ele lhe enfiava o apagador, destruindo tudo para abrir espaço. Mas de todas as lembranças que tenho, uma delas sobressai: o dia em que vi Fiorano rir. Ele aplicava uma prova, e o tlec-tlec dos esquadros preenchia os vãos do tenso ambiente. Fiorano andava por entre as cascavéis, espiando seus desenhos. A certa altura, ao passar ao lado de um aluno que tinha sobre a mesa um tubo de chocolates, parou ao seu lado e, cortês, perguntou:
— Posso pegar um?
O aluno, é claro, autorizou-o. Autorizaria mesmo que tivesse prometido o último chocolate ao presidente, e olha que, na época, os presidentes eram generais. Fiorano começou a retirar o papel dourado e, antes de pôr o chocolate na boca, olhando para ele como se lhe falasse, disse, com sua voz de trovoada:
— Quando eu tinha a idade de vocês, tinha um professor que filava tudo o que os alunos tivessem de comer sobre as mesas. Não podia ver nada comestível, que pegava, muitas vezes sem pedir.

Pensou um pouco e prosseguiu, sempre olhando para o chocolate:
— Eu tinha um colega que era filho de sapateiro. Os sapateiros usavam, naquela época, uma certa graxa para ensebar os fios com que costuravam os sapatos. Pois essa graxa tinha esta forma, exatamente a forma e a textura deste chocolate. Todos pararam a prova para assistir Fiorano, entre curiosos e extasiados: nunca o tinham visto fazer aquilo, divagar, contar um caso, sorrir, conversar com um chocolate, ainda mais durante uma prova.

E ele prosseguiu:— Então, um dia, irritado com o professor, esse meu colega filho do sapateiro pediu ao pai uma rodinha de graxa, de cor marrom, e a embrulhou cuidadosamente com o papel do chocolate. Colocou-a na embalagem, levou para a escola e, quando começou a aula com o tal professor, ele pôs o tubo sobre a mesa. Deixou-o lá, à espera, tendo o cuidado de avisar aos colegas que não o tocassem. Não demorou muito, o professor viu aquilo. Apanhou a embalagem sem pedir licença, tirou-lhe o “chocolate” — e aqui Fiorano parou e sorriu, safado — , desembrulhou- o e enfiou a graxa na boca, de uma vez, dando-lhe logo umas duas ou três mastigadas, antes de sentir o gosto. Teve que sair da sala, para ir cuspir a espuma no banheiro! Passou horas limpando aquela porcaria dos dentes. — concluiu, e caiu na gargalhada, sempre olhando para o chocolate. Terminou de rir, jogou o chocolate para dentro da boca, e encerrou, quase carinhoso:
— Vamos, vamos, terminem a prova.

Fiorano, dono dos olhos mais temidos da escola, o homem de pedra, se desfez em riso perante uma lembrança agradável de sua infância. E eu lhe agradeço, porque é exatamente isso que faço agora.

*Este texto foi originalmente publicado na revista Quarteirão Paulista, edição janeiro/fevereiro, nº 15.

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